segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Bélgica

O pesadelo belga
.
Por Jorge Pinheiro




Livraria nazista em Brugge
Foto de Marcela Duarte

Bruxelas – Eu começaria dizendo que os belgas são conhecidos por seu bom humor, por produzirem um bilhão de litros de cerveja/ano e consumirem, também anualmente, oito quilos de chocolate por habitante. Para nós, o país não é grande, quase uma Alagoas, e cerca de 10 milhões de habitantes.

A crônica teve início em Bruges, a Veneza do Norte, flamenga e medieval, que sobreviveu às guerras e hoje é patrimônio tombado pela ONU. Minha cicerone é Marcela Duarte. Ela me levou até uma esquina e me mostrou uma livraria, Degheldere, em Leemputstraat, 2. Olhei e me arrepiei: na vitrine, livros sobre Hitler, sobre as operações militares do exército nazista e seus generais. A extrema-direita é real e ativa.

Tal realidade me levou a correlacionar politicamente três questões: o federalismo, os nacionalismos e as direitas na Bélgica.

A Bélgica é uma monarquia constitucional parlamentar. Possui um parlamento federal e três parlamentos regionais, que representam as nacionalidades e regiões: Valônia, de idioma francês; Flandres, de idioma flamengo; e o extremo-leste de Flandres, de idioma alemão.

A Bélgica precisa para sua sobrevivência de um projeto político comum, construído por todas as nacionalidades envolvidas na federação, e de respeito pela diferença.

Dentro da tradição socialista, a questão nacional sempre foi diluída no sonho da internacionalização do mundo do trabalho e, por extensão, de toda a humanidade. Kautsky, Berstein, Luxemburgo debruçaram-se sobre a questão nacional sem chegar a um acordo. E na formação da própria União Soviética, o projeto federal foi esmagado pela ditadura. Ou seja, pelo estado centralizado a partir de um centro de poder.

Paul Tillich fez uma leitura das correlações entre cristianismo e socialismo [1] onde procurou, a partir da solidariedade ética, apresentar soluções para os problemas enfrentados pelo socialismo.

Entendeu que uma ética solidária possibilita um objetivo estável para os desafios sociais, pois pode reunir o que está separado e mudar o que não deve ser, apesar da separação tomar diferentes formas através dos tempos, das relações e das circunstâncias.

Assim, a ética solidária na construção do socialismo deveria partir da intuição criadora para superar a separação. Não poderia se contentar com velhas receitas, mas imaginar novas soluções. Não poderia ficar presa às regras e, embora parta delas e seja inspirada por elas, deveria modificá-las e atualizá-las em função das novas situações que se apresentam.

Tal ética levaria a uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social: faria a crítica daquela ordem erigida sobre o egoísmo político e econômico, e proclamaria a necessidade de uma nova ordem, na qual o sentido de comunidade fosse o fundamento da organização social.

A solidariedade ética denuncia o egoísmo da economia das multinacionais e dos governos que servem a elas, que levam à expropriação de muitos em benefício de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja apenas fruto do ganho, mas também do próprio trabalho.

A ética da solidariedade condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo, e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas nega também a afirmação da guerra e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios em cargos e funções e da exploração de setores profissionais por outros.

Mas voltemos ao caso belga, onde os partidos de centro-esquerda se posicionam relativamente à vontade na federação, embora este não seja o caso das direitas e, principalmente, das direitas às extremas. Não que partidos de direita sejam incompatíveis com o federalismo. Porém, na Bélgica, o federalismo tem que encarar duas propostas centrífugas das direitas. Uma que, em nome do “povo” de determinada nacionalidade, propõe que essa nacionalidade represente hegemonicamente o estado federal; e outra que, também em nome de determinada nacionalidade, reivindica separação e, por extensão, o fim do federalismo.

A partir dessas duas propostas nacionalistas temos os movimentos das direitas e extrema-direitas belgas em suas correlações com o estado federal. Ambos são movimentos centrífugos. O Front Nacional/FN, francófono; e o Front nouveau de Belgique/FNB, também francófono, por exemplo, são partidos que defendem a hegemonia da Valônia sobre o conjunto da federação. E assim cumprem um papel centrífugo.

Já o partido Vaams Belang, flamengo, ultranacionalista e fascista, defende a separação nacional de Flandres, e cumpre também um papel centrífugo.

Os belgas, diferenças à parte, são orgulhosos de sua cultura e arte. Na pintura são impressionantes: podemos falar de Melchior Broederlam, Jan Van Eyck, Quentin Metsys, Peter Bruegel de Alt, Peter Paul Rubens, mas também da Art Nouveau, de Henry Van de Velde, um dos fundadores do Bauhaus, e, para meu deleite, de Hergé, que criou Tin-Tin. Mas, mesmo com crise o humor belga permanece:



Mas voltemos às nacionalidades. É possível reunir os diferentes partidos da direita e da extrema-direita concorrentes dentro do Estado federal? Para uma resposta coerente com a realidade política da federação vou recorrer ao jornalista Herwig Lerouge, editor da revista Études marxistes, e especialista em questões da extrema-direita.

Para ele, as atuais propostas de reforma do estado, apresentadas pelas direitas, escondem uma agenda neoliberal que traduz os desejos das multinacionais travestidas de nacionalistas, onde o objetivo é fraturar a federação e dividir o mundo do trabalho. Ou seja, as multinacionais querem derrotar as conquistas trabalhistas e salariais, e para isso precisam quebrar as entidades de classe e seu poder de mobilização.

Assim, as direitas e as extrema-direitas da Valônia, de Flandres e do extremo-leste de idioma alemão, quer se choquem ou não, são fatores de debilitamento das propostas que podem levar a reformas institucionais e fortalecimento do estado belga.

Hoje, então, esses movimentos nacionalistas transformaram-se em árbitros de qualquer processo de reforma. Eis o impasse que assombra a Bélgica e, por extensão, a própria Comunidade Européia, já que o Parlamento europeu está sediado em Bruxelas.

É interessante que Lerouge, embora eu não saiba se ele conhece os trabalhos de Tillich, propõe uma reforma do estado belga baseada na solidariedade. Para ele, a solidariedade é o antídoto para o separatismo nacionalista que envenena a política no país.

Considera que é importante manter a solidariedade entre as regiões e comunidades, embora afirme que a ameaça de separação seja real. Para Lerouge, o federalismo, ao contrário do que muitos pensam, leva ao desequilíbrio e ao distanciamento das nacionalidades quando o assunto é a política federal. Por isso, advoga um estado não federativo.

À maneira tillichiana, Lerouge propôs a mobilização contra as tendências separatistas, afirmando que ninguém ganhará com o fracionamento da Bélgica. Daí a campanha que lançou: "Sauvons la solidarité".

Estamos torcendo, com ele, para que a solidariedade mantenha a Bélgica unida e criativa.

6/6/2009

Fonte: ViaPolítica/O autor

Nota

[1] . “Rapport au Consistoire de la Marche de Brandenbourg, 1919” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 154-160. “Christentum und sozialismus, Bericht an das Konsistorium der Mark Brandenbourg”, Impressionen und reflexionen, Gesammelte Werke, XIII, Evangelisches Verlagswerke Stuttgart, 1972, pp. 154-160. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992

Leia mais sobre a revista Études marxistes em http://www.marx.be/FR/em_index.htm

O teólogo e jornalista Jorge Pinheiro viajou à Paris para participar de um encontro internacional de estudos sobre a obra de Paul Tillich, o XVIIIe Colloque de l’Association Paul Tillich d’expression française. Sua primeira crônica de viagem está em http://www.viapolitica.com.br/anima_view.php?id_anima=118. A segunda pode ser lida em http://www.viapolitica.com.br/anima_view.php?id_anima=122

Mais sobre Jorge Pinheiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário