quarta-feira, 13 de abril de 2011

Omã

Omã: Não tirem os olhos do Golfo
DOSSIER | 12 MARÇO, 2011 - 01:00
Imaginem um paraíso feudal ou neo-medieval, lar do legendário Sindbad, o Marinheiro, onde reina, absoluto, um septuagenário solteiro, magro, que toca alaúde e escolheu viver em paz no seu palácio, o sultão Qabus bin Sa’id, paradigma da discrição. Em poucas linhas, eis Omã. Por Pepe Escobar.

O sultão Qabus bin Sa'id cumprimentando o Secretário da Defesa dos EUA Robert M. Gates em 2008, no Omã. Foto WikimediaCommons.
Imaginem um paraíso feudal ou neo-medieval, lar do legendário Sindbad, o Marinheiro, onde reina, absoluto, um septuagenário solteiro, magro, que toca alaúde e escolheu viver em paz no seu palácio, o sultão Qabus bin Sa’id, paradigma da discrição. Em poucas linhas, eis Omã. Por Pepe Escobar.
No Omã pratica-se o Islã ibadi – nem sunita nem xiita –, também encontrado em selectas latitudes no norte e leste da África. Nada poderia ser mais diferente do wahhabismo, ou do fanatismo jihadista à moda da al-Qaeda. Em termos de Omã, o Islã ibadi implica procurar o justo equilíbrio, numa mistura de costumes tribais e aparato de estado (Qabus orgulha-se muito do sistema de consultas aos anciãos das tribos).
Washington – e Londres – são absolutamente apaixonados por Qabus. Formado na Academia Militar de Sandhurst na Grã-Bretanha, o homem é amante de Mozart e Chopin, com um faro estratégico que tem sido comparado ao do pai fundador de Singapura, Lee Kwan Yew. (Quando estive em Omã, senti-me, mesmo, como se estivesse numa Singapura árabe. Tudo em Omã é limpo demais, disneylandiamente perfeito demais, uma espécie de Stepford Wives [1] à moda de Singapura.)
O amor dos EUA é facilitado pelo facto de o sultão ter dado enorme mão a George H W Bush durante a 1ª Guerra do Golfo em 1991 contra o Iraque de Saddam Hussein, estendendo o favor a George W Bush e permitindo que 20 mil soldados dos EUA parassem em Omã antes de invadir o Afeganistão e o Iraque. Coroando tudo, o largo e profundo, além de imensamente estratégico, Estreito de Ormuz – essencial para a navegação dos superpetroleiros no Golfo Persa – está em território de Omã.
Lamento estragar o namoro, mas...
Qabus, no poder desde 1970, talvez ainda não seja objecto da ira do povo, no seu paraíso no Golfo de Omã. Mas a vez dele – e das elites de Omã – não tarda, nas voltas que dá o relógio da Grande Revolta árabe de 2011, que não pára.
Na lista dos países à espera de levar sapatadas na revista The Economist, Omã ocupa nada menos que o 6º lugar, logo abaixo do já-deposto Hosni Mubarak do Egipto e muitos furos à frente de Zine el-Abidine Ben Ali já-deposto na Tunísia e do Khalifa-por-um-fio do Bahrain. Metade da população de menos de três milhões de habitantes tem menos de 21 anos. O desemprego é altíssimo – sobretudo entre os portadores de inúteis diplomas. De um total de mais de 40 mil inscritos nos cursos secundários, por ano, só alguns pouquíssimos encontram emprego.
Não há receita mais segura para tumultos. Bloggers e tuitters de Omã destacam que tem havido manifestações em Sur e nos portos crucialmente estratégicos de Salalah (no sul, perto do Iémen) e de Sohar (onde a polícia matou um menino de 15 anos; a polícia de Omã – como a Mukhabarat egípcia – é treinada na Jordânia). Não menos de 3 mil manifestantes foram atacados com gás lacrimogéneo. A estrada entre Sohar e al-Ayn – que atravessa a fronteira para os Emirados Árabes Unidos (UAE) – foi fechada.
Os manifestantes, basicamente, queixam-se dos salários miseráveis, numa luta perdida contra a inflação que não arrefece, e de praticamente todos os empregos iram para estrangeiros (empregados das empresas estrangeiras) ou para os nativos que vivam na capital, Muscat.
São manifestações pacíficas. Os manifestantes dizem que não sossegarão enquanto os salários não melhorarem. Preventivamente, o sultão aumentou o salário mínimo nacional, de 316 dólares mensais, para 520 dólares; os manifestantes exigem “não menos de 1.300 dólares”. E mais: melhores aposentadorias; educação gratuita para todos; e, por que não, a renúncia do governo. Durante o fim de semana, o sultão mudou o Gabinete e anunciou 50 mil novos empregos, e benefícios aos desempregados. Os manifestantes responderam: “Só palavras”.
Também é crucial que nada disso esteja a ser noticiado adequadamente no Golfo. A rede Al-Jazira está estranhamente calada. A rede Al-Arabiyya – porta-voz da Casa de Saud – também está muito quieta. Para não falar da imprensa em Omã. A Al-Jazira foi pesadamente criticada em várias frentes durante semanas pela fraquíssima cobertura dos eventos no Bahrain – se comparada à blitzkrieg de 24 horas/dia, sete dias/semana de cobertura do Egipto ou da Líbia. Tudo isso despertou suspeitas de que para o emir do Qatar, há “luta pela democracia” (no norte da África) e “luta pela democracia” (no Golfo), assuntos diferentes.
Estreitos e apertos [2]
Sohar – ex-lar de Sindbad, o Marinheiro – a 80 quilómetros da fronteira com os Emirados Árabes Unidos, e a 200 quilómetros da capital Muscat, merece exame detalhado. É a usina de energia industrial de Omã – lá está um dos maiores projectos de desenvolvimentos de portos do mundo, além de uma refinaria, um complexo petroquímico, uma indústria de alumínio e uma fábrica de aço. Os trabalhadores do petróleo em Sohar começam a unir-se aos manifestantes. Não é impossível, para eles, bloquear o bombeamento de petróleo para exportação, como meio para pressionar o sultão. Omã bombeia 860 mil barris de petróleo/dia e exporta cerca de 750 mil barris.
A economia global sabe que o Golfo Persa é sua principal fonte de petróleo. A noção paranóica de que o Estreito de Ormuz poderia ser fechado pelo Irão no caso de guerra contra EUA/Israel sempre foi uma quimera fabricada pelos neoconservadores. A realidade mostra agora outro cenário: a democracia real está a chegar às portas de Omã, esse “farol da estabilidade”.
Do ponto de vista da economia global, a luta pela democracia pode converter-se num cenário de pesadelo. Se a Líbia e Omã saírem completamente do mercado, desaparecerão da economia global 2,5 milhões de barris de petróleo/dia, 3% do que o mundo consome. Não há qualquer evidência de que a Arábia Saudita possa compensar a falta, explorando máquinas e infraestruturas até o limite. Tradução: o barril de petróleo pode ultrapassar os 150 dólares o barril, numa questão de dias. E, isso, sem ninguém nem supor que possa haver protestos em Março, na Arábia Saudita.
Omã não é exactamente um acidente da história, como os reinos do Golfo – que não passavam de “o fio de pérolas” na rota naval do império britânico ao longo do Oceano Índico. Não surpreende que Lord Curzon, o imperialista-chefe, os chamasse de “pequeninas lideranças árabes” [orig. petty Arab chiefships] (ao que parece, pouco mudou sob o governo imperial dos EUA). No que tenha a ver com Washington, Omã continua a ser o proverbial “aliado estável dos EUA” – atracado à sua marinha altamente treinada nos EUA e, o que é decisivo, posta bem ali, na boca do inexcedivelmente estratégico Estreito de Hormuz.
Omã não é exactamente uma família recentemente estabelecida no deserto – como a Casa de Saud. A dinastia reinante – al-Bu Sa'id – tem mais tempo de poder que os EUA de existência.
Mas, apimentemos um pouco toda esta “estabilidade”. Omã é o berço de um dos mais sofisticados movimentos de oposição de todo o mundo árabe – hoje incorporado em grande medida pela Frente Popular de Libertação de Omã [orig. Popular Front for the Liberation of Oman]. Alguns dos líderes acabaram cooptados pelo sultão, mas o ímpeto progressista, modernizante, não se perdeu completamente.
Simultaneamente, os EUA fazem das tripas coração para que se acredite que Omã respeita os direitos humanos, os direitos políticos, esses, não há quem salve: continuam praticamente no zero. Nada de imprensa livre, nada de livre manifestação do pensamento, nada de liberdade para reunir-se, nada de liberdade de religião. Omã talvez não seja a ultra-repressiva Arábia Saudita, o selvagem Iémen – mas tampouco é alguma Escandinávia (o pessoal dos think-tanks de Washington insistem em comparar o sultão aos primeiros-ministros escandinavos).
A Grande Revolta Árabe de 2011 está, citando Bob Dylan, “dirigindo a 90 milhas por hora, por um beco sem saída” no Bahrain; deve fazer um pit-stop na Arábia Saudita; e já chegou a Omã. O septuagenário sultão tem diabetes, não tem herdeiro para o trono, e está oficialmente intrigado com tantos jovens desempregados e trabalhadores irados, bem ali à sua porta. Atenção: cuidado com o imperialismo humanitário, pronto para meter a cabeçorra na Líbia. Mas que ninguém tire os olhos do estreito de Hormuz; mas na costa de Omã, não na costa iraniana.

Notas de tradução
[1] The Stepford Wives (1975, refilmado em 2004) é um filme de ficção científica/horror (dir. Bryan Forbes), baseado num romance de Ira Levin.
[2] Orig. “Dire Straits”. Não há como traduzir. A expressão significa “dificuldades graves”, mas, também, é o nome de uma banda de rock do final dos anos 80, período e rock nos quais Pepe Escobar é especialista; e “estreito”, neste contexto, só o de Hormuz. Tradução tentativa temerária.

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Artigo de Pepe Escobar, publicado no Asian Times, traduzido pelo Colectivo Vila Vudu/Rede Castorphoto.
(esquerda.net)

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