quarta-feira, 27 de abril de 2011

Assange

Julian Assange:
“WikiLeaks gerou o
clima crítico para
as reformas políticas”
.
Por N. Ram


Tradução do Coletivo da Vila Vudu

Em entrevista ao editor-chefe do jornal The Hindu, que tem uma tiragem de mais de 1,4 milhões de jornais por dia, Julian Assange, editor-chefe do WikiLeaks, afirma: “Muitas vezes acontece que a corrupção, nos países em desenvolvimento, é facilitada por bancos do Primeiro Mundo, gente que tira fortunas do país por vias ilegais, por exemplo”. O encontro ocorreu em Ellingham Hall, Norfolk, Reino Unido, na imponente casa de campo de propriedade de Vaughan Smith, um ex-oficial do exército britânico e jornalista,que hoje é a casa temporária de Assange enquanto aguarda a audiência do seu recurso contra a decisão judicial de extraditá-lo para a Suécia.

N.Ram e Assange

The Hindu: Sr. Assange, a publicação em março-abril 2011, dos Índia Cables, aos quais o jornal The Hindu teve acesso mediante acordo com WikiLeaks — deferência pela qual lhe agradecemos muito —, teve impacto dramático na política e na opinião pública na Índia. Como o senhor sabe, sacudiu o Parlamento e pôs na defensiva o governo Manmohan Singh, e não poupou nem a oposição. A mídia na Índia, jornais, televisões, assumiram a história com empenho, e tenho a impressão que WikiLeaks tornou-se um nome familiar a todos os indianos. Não que fosse nome desconhecido, e o seu trabalho é extremamente importante, reconhecido na Índia, tanto quanto antes se reconheceu o trabalho que tornou público o “escândalo Bofors”1 entre o final dos anos 1980s e primeiros anos dos 1990s. Como o senhor entende o que houve aqui, comparado ao impacto da revelação do Cablegate, quando começou, em novembro de 2010 pelo The Guardian e outros quatro jornais ocidentais?
R – O que houve na Índia me encorajou muito. Só o The Hindu deu 21 primeiras páginas ao Cablegate, a maior cobertura que obtivemos considerando The Guardian, Le Monde, Der Spiegel, The New York Times e El País, nossos parceiros originais, embora alguns tenham feito bom trabalho. É semelhante ao que vimos no caso de alguns dos nossos parceiros regionais na América Latina, como Peru e Costa Rica, quando viviam períodos pré-eleitorais – e o foco local muitas vezes faz sumir detalhes importantes.
Acho que se pode dizer, baseado no que tenho lido em The Hindu, que o jornal é mais livre, em termos jornalísticos, que os outros nos seus respectivos países. Acho que não se trata só de The Hindu ter mais poder político mas, também, de o governo federal ser mais fraco, como estrutura capaz de arrastar a opinião de jornais e jornalistas e suprimir qualquer possibilidade de jornalismo independente.
O que sei é que cada uma das facções políticas indianas nacionais consegue encontrar meios de chegar à opinião pública e pressioná-la, o que é estimulante. Parece que na Índia não se criou o quadro no qual a imprensa governa, como se vê em tantos países e nos EUA, sobretudo.

P – Obrigado. A Índia, com os seus 1.200 milhões de habitantes – é o número do censo de 2011 – está emergindo como potência econômica e política. Os telegramas sobre os quais trabalhamos até agora expõem as entranhas venais e corruptas do poder na Índia, que é corrupto, não-transparente, vulnerável à manipulação pela grandes potências, sobretudo pelos EUA. Quanto à corrupção, o sistema vigente é “dinheiro-em-troca-de-voto”. Nas eleições no sul da Índia foi exatamente o que se viu, e viu-se o mesmo também na votação de um voto de confiança no Parlamento em 2008. Há empresas que subornam políticos – como as manobras da Dow Chemical Company e da Bophal, que herdou as vantagens da Union Carbide, para conseguirem autorizações para construir as suas fábricas. E tem-se também o contrário, políticos corruptos que facilitam o exercício da corrupção empresarial. O que significa o que está acontecendo hoje na Índia, depois de WikiLeaks, se se considera que a corrupção é hoje o principal obstáculo ao crescimento da Índia?
R – O que está a acontecer hoje, depois de WikiLeaks, parece-me, é que os indianos estão a conseguir falar sobre a corrupção. Claro que há corrupção aqui, e é preciso fazer alguma coisa. É muito estimulante saber que tanta gente, agora, consegue trabalhar mais claramente contra a corrupção, inclusive aquela moça, gandhista, que está fazendo greve de fome...

P – Anna Hazare.
R – Sim, Anna Hazare. Na Tunísia, também, a publicação dos telegramas no início de dezembro gerou um clima político de extrema rejeição ao governo de Ben Ali. De qualquer modo, é preciso muita coragem pessoal para que um indivíduo decida tomar alguma atitude pessoal, física, direta, que pode desencadear grandes movimentos. É possível que aí esteja um primeiro passo de uma grande luta contra a corrupção. Felizmente, a Índia não está sozinha. No nosso trabalho, denunciamos negócios de milhões de dólares, negócios de corrupção, em todo o mundo. Também no Primeiro Mundo.
Muitas vezes acontece que a corrupção, nos países em desenvolvimento, é facilitada por bancos do Primeiro Mundo, gente que tira fortunas do país por vias ilegais, por exemplo. A Índia é responsável pelos maiores depósitos nos bancos suíços, o que é preciso questionar. O que aquele dinheiro está a fazer em bancos suíços?

P – Sim. Vocês estão trabalhando com o material de Rudolf Elmer. Em que pé está isso?
R – Rudolf Elmer está preso, já há oito, agora dez semanas. Mas não há acusação formalizada contra ele, não foi acusado de coisa alguma, porque não há provas. Está numa posição difícil, porque criou graves embaraços para o Estado suíço. 50% do PIB da Suíça vem do setor bancário — e 1/3 de toda a riqueza privada do mundo está em bancos suíços. Dizem que Rudolf Elmer nos mandou os seus arquivos, mas não sabemos se foi ele, nem podemos falar sobre o assunto, por hora.

P – O impacto da publicação dos telegramas nos países africanos, na Tunísia, talvez no Egito. Em que medida o senhor atribui o que está a acontecer lá, as revoluções árabes, à divulgação dos telegramas diplomáticos norte-americanos, por WikiLeaks?
Essa é a parte fascinante da história. Os países do MENA [inglês: Middle East and North Africa, Médio Oriente e Norte da África] estão a viver uma primavera extraordinária. A Tunísia, o Egito, partes da Líbia, mas, de fato, toda a região. Reis depostos, presidentes e ditadores derrubados, ou tendo de fazer muitas concessões, para se manterem no poder.
É resultado, me parece, de dois processos.
Pode-se pensar na região como madeira que está secando há anos, cinco anos, mais. E que quanto mais seca, mais se torna suscetível de reformas repentinas, radicais. Os fatores que contribuem para isso são vários, a começar pelos satélites de comunicação. Com o satélite, Al-Jazeera entrou na região. Foi a decisão da Al-Jazeera noticiar alguns protestos e não noticiar outros – nada noticiam sobre o Qatar –, e isso é problema. Mas também há a Internet na região, cada dia mais conectada, o maior número de telefones celulares, o aumento demográfico da população jovem, mais educação, mais contactos, mais viagens entre os países do norte da África.
Tudo isso gerou uma situação na qual bastaria um empurrão, uma fagulha, um movimento que exigisse reformas, para que toda a madeira seca se incendiasse. A questão é: por que o fogo só ‘pegou’, mesmo, nesse momento?

O cablegate e a Tunísia
No início de dezembro, começamos a trabalhar com dois jornais Al-Akhbar, do Líbano, e Almasry Alyoum, do Cairo. Os dois jornais começaram a publicar muitos telegramas focados naquela região. Al-Akhbar foi imediatamente atacado e tiraram-lhe o nome de domínio, e o jornal foi redirecionado para um site da Arábia Saudita, sofreu vários ataques massivos de hackers. Até que hackers sofisticados conseguiram apagar todo o conteúdo do site Al-Akhbar.
O governo da Tunísia baniu WikiLeaks e Al-Akhbar. Hackers que trabalham connosco invadiram os websites do governo da Tunísia e redirecionaram todos para WikiLeaks. No dia 16/12, um jovem técnico de computadores, que trabalhava no mercado tentando vender frutas, mas que tivera a sua licença negada por arranjos da corrupção oficial, suicidou-se, pondo fogo no seu próprio corpo. E dias depois, no dia 4 de janeiro, morreu no hospital.
Esse evento deu às revelações sobre corrupção política e aos demais arranjos escusos do poder que estavam a ser revelados nos telegramas, e à agitação que já começava nas ruas, a carga vital, físico-emocional que ainda não havia, e realmente levou ao início dos grandes protestos de rua.
Quanto à Tunísia, sim, os telegramas revelaram detalhes da corrupção, da opulência e da decadência que cercavam toda a família Ben Ali. Não que os tunisinos não soubessem de quase tudo aquilo, mas não havia provas. Ainda mais, os telegramas mostraram que os EUA adotavam uma posição diplomática de dar cobertura aos desmandos do ditador, mas que apoiariam o exército contra o ditador, se se chegasse ao ponto de confronto entre os dois. Isso fez crescer as esperanças dos ativistas e do exército na Tunísia e, simultaneamente, foi como um aviso para a Arábia Saudita e outros países na Região, de que os EUA não interfeririam para defender Ben Ali. Que pensassem no que faziam, para não cair do lado errado da equação dos interesses ocidentais.
Vários telegramas mostravam os diplomatas dos EUA criticando os abusos e a corrupção do regime de Ben Ali – além de abusos de direitos humanos. Os telegramas, de fato, impediram que os EUA, que Hillary Clinton, viesse a público para dizer “Ben Ali é um grande líder democrático, ele deve ficar, tem de ser apoiado”, etc. Aconteceu o mesmo com aliados dos EUA na Europa Ocidental, França e Grã-Bretanha, também ficaram sem meios para apoiar o governo de Ben Ali, ao qual os embaixadores dos EUA faziam tantas críticas.

Revolução dos torcedores de futebol
Quando a revolução chegou ao Egito, só havia, como núcleo central organizado, as torcidas de futebol. Não foi a Irmandade Muçulmana, como Mubarak e os EUA e outros que tentavam apoiar o regime sugeriram. A revolução começou com o homem médio, com as torcidas de futebol. Esse pessoal produziu um manual revolucionário de cerca de 40 páginas. Da primeira à última página, o manual diz e insistem “não usem Facebook e Twitter”. Depois, vimos Hillary Clinton e outros dizerem que apoiaram a reunião desde o início e que foi trabalho, ajudado por boas empresas norte-americanas como Facebook e Twitter.
O manual produzido pelos revolucionários dizia que evitassem Facebook e Twitter. Mas Facebook e Twitter foram usados no ocidente e pela comunidade de expatriados, só depois, para distribuir informações sobre o que já estava a acontecer no Egito.
Pode-se lembrar o que houve no Irã, a chamada “Revolução do Twitter”. Nunca aconteceu revolução do Twitter. É ficção, invenção da imaginação ocidental.

Gasolina WikiLeaks, sobre o incêndio egípcio
No Egito, sim, houve revolução. A revolução no Egito foi resultado de já haver grupos jovens organizados. Divulgamos a maior quantidade possível de telegramas, gasolina WikiLeaks sobre o incêndio egípcio, com quantidades gigantescas de telegramas sobre o regime egípcio e especialmente sobre os desmandos de Mubarak e [Omar] Suleiman.
Havia um projeto para pôr Suleiman no poder, quando Mubarak começou a ser questionado. Suleiman era o cabeça da segurança, detestado pelos ativistas egípcios e apoiado pelos EUA e por Israel. Suleiman sempre foi o homem deles no Egito, para lidar com os problemas de Gaza. E disparamos telegramas e telegramas, mostrando embaixadores dos EUA que diziam que Suleiman era o encarregado da repressão contra vários grupos no Egipto e que Mubarak sempre o acobertou e autorizou, inclusive os métodos de tortura. Outros telegramas mostraram que Suleiman supervisionara pessoalmente a tortura de um ou dois canadenses que haviam sido entregues pelos EUA ao Egito para interrogatório. Essas revelações impediram que os EUA apoiassem Suleiman diretamente e publicamente.

(Fim da primeira parte da entrevista. Prossegue na próxima atualização semanal )

17/4/2011

Fonte: Publicado no jornal indiano The Hindu, traduzido pelo coletivo da Vila Vudu e disponível em redecastorphoto.blogspot.com

Publicado também em Esquerda.net

Nota de tradução
1) O chamado “escândalo Bofors” foi divulgado na Índia nos anos 80. O então primeiro-ministro Rajiv Gandhi e vários políticos foram acusados de receber dinheiro da empresa Bofors AB. Foi o maior escândalo de corrupção que a Índia jamais conhecera até então, e levou diretamente à derrota do partido de Gandhi, o Congresso Nacional Indiano, nas eleições gerais de novembro de 1989.

Nenhum comentário:

Postar um comentário