domingo, 17 de abril de 2011

S. Francisco

A quem serve a transposição das águas do São Francisco?


"O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da Chapada do Araripe - com grande gasto de energia!-, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política", escreve Aziz Ab´Sáber, geógrafo, professor e escritor, em artigo publicado pela Agência Envolverde, 23-03-2011.
Segundo ele, "no fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria".
Eis o artigo.
É compreensível que em um país de dimensões tão grandiosas, no contexto da tropicalidade, surjam muitas ideias e propostas incompletas para atenuar ou procurar resolver problemas de regiões críticas. Entretanto, é impossível tolerar propostas demagógicas de pseudotécnicos não preparados para prever os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos de projetos teimosamente enfatizados.
Nesse sentido, bons projetos são todos aqueles que possam atender às expectativas de todas as classes sociais regionais, de modo equilibrado e justo, longe de favorecer apenas alguns especuladores contumazes. Nas discussões que ora se travam sobre a questão da transposição de águas do São Francisco para o setor norte do Nordeste Seco, existem alguns argumentos tão fantasiosos e mentirosos que merecem ser corrigidos em primeiro lugar. Referimo-nos ao fato de que a transposição das águas resolveria os grandes problemas sociais existentes na região semi-árida do Brasil.
Trata-se de um argumento completamente infeliz lançado por alguém que sabe de antemão que os brasileiros extra-nordestinos desconhecem a realidade dos espaços físicos, sociais, ecológicos e políticos do grande Nordeste do País, onde se encontra a região semi-árida mais povoada do mundo.
O Nordeste Seco, delimitado pelo espaço até onde se estendem as caatingas e os rios intermitentes, sazonários e exoreicos (que chegam ao mar), abrange um espaço fisiográfico socioambiental da ordem de 750.000 quilômetros quadrados, enquanto a área que pretensamente receberá grandes benefícios abrange dois projetos lineares que somam apenas alguns milhares de quilômetros nas bacias do rio Jaguaribe (Ceará) e Piranhas/Açu, no Rio Grande do Norte. Portanto, dizer que o projeto de transposição de águas do São Francisco para além Araripe vai resolver problemas do espaço total do semi-árido brasileiro não passa de uma distorção falaciosa.
Um problema essencial na discussão das questões envolvidas no projeto de transposição de águas do São Francisco para os rios do Ceará e Rio Grande do Norte diz respeito ao equilíbrio que deveria ser mantido entre as águas que seriam obrigatórias para as importantíssimas hidrelétricas já implantadas no médio/baixo vale do rio - Paulo Afonso, Itaparica e Xingó.
Devendo ser registrado que as barragens ali implantadas são fatos pontuais, mas a energia ali produzida, e transmitida para todo o Nordeste, constitui um tipo de planejamento da mais alta relevância para o espaço total da região.
Segue-se na ordem dos tratamentos exigidos pela idéia de transpor águas do São Francisco para além Araripe a questão essencial a ser feita para políticos, técnicos acoplados e demagogos: a quem vai servir a transposição das águas?
Os "vazanteiros" que fazem horticultura no leito dos rios que "cortam" - que perdem fluxo durante o ano-serão os primeiros a ser totalmente prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: "A cultura de vazante já era". Sem ao menos dar qualquer prioridade para a realocação dos heróis que abastecem as feiras dos sertões. A eles se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis que viessem a ser identificados e implantados. De imediato, porém, serão os fazendeiros pecuaristas da beira alta e colinas sertanejas que terão água disponível para o gado, nos cinco ou seis meses que os rios da região não correm.
Um projeto inteligente e viável sobre transposição de águas, captação e utilização de águas da estação chuvosa e multiplicação de poços ou cisternas tem que envolver obrigatoriamente conhecimento sobre a dinâmica climática regional do Nordeste. No caso de projetos de transposição de águas, há de ter consciência que o período de maior necessidade será aquele que os rios sertanejos intermitentes perdem correnteza por cinco a sete meses.
Trata-se, porém, do mesmo período que o rio São Francisco torna-se menos volumoso e mais esquálido. Entretanto, é nesta época do ano que haverá maior necessidade de reservas do mesmo para hidrelétricas regionais. A afoiteza com que se está pressionando o governo para se conceder grandes verbas para início das obras de transposição das águas do São Francisco terá conseqüências imediatas para os especuladores de todos os naipes.
O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da Chapada do Araripe - com grande gasto de energia!-, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política.
No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria.
Para ler mais:
• Transposição do Rio São Francisco: uma jogada eleitoral. Entrevista especial com Dom Luiz Flávio Cappio
• 'O povo foi colocado à deriva e o governo cospe no prato que comeu'. Entrevista especial com Dom Luiz Cappio
• A transposição do Rio São Francisco em debate. Cadernos IHU em Formação, n. 28
• Salvar o velho Chico: uma luta que se revitaliza. Revista IHU On-Line nº 159
• Quem olha o Rio São Francisco? Entrevista especial com Rubens Siqueira
• Combate à seca no semi-árido e a transposição do São Francisco: o desenvolvimento sustentável da região é possível. Entrevista especial com Roberto Marinho Alves da Silva
• A relação fé e política. Uma reflexão a partir da luta contra a transposição do Rio São Francisco. Entrevista especial com Pedro Ribeiro de Oliveira
• As contradições da transposição do Rio São Francisco e a palavra forte e profética de D. Cappio. Entrevista especial com Ivo Poletto
• Rio São Francisco: 'O movimento contra o projeto tem que ser politicamente ampliado e nacionalizado'. Entrevista especial com João Abner
• A greve de fome de Dom Cappio: um ato de nítido alcance político. Entrevista com João Batista Libânio
• A vida do Rio São Francisco e de Dom Luiz Cappio. Entrevistas especiais com Roberto Malvezzi, Thomas Bauer, Rita Cappio e Dom Paulo Cardoso
• Transposição do Rio São Francisco e a luta de Frei Cappio. Entrevista especial com Ruben Siqueira e Roberto Malvezzi (Gogó)
• Transposição do Rio São Francisco: das contradições às soluções. Entrevista especial com Apolo Lisboa
• Transposição do Rio São Francisco: existem outros caminhos mais abrangentes, eficientes e baratos. Entrevista especial com Roberto Malvezzi (Gogó)
• A luta pelo Rio São Francisco. Entrevista especial com Adriano Martins
• Bispos visitam obras da Transposição do Rio São Francisco
• A transposição do Rio São Francisco. Cadernos IHU em Formação, no. 28



(Inst. Humanitas Unisinos)

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