sábado, 23 de abril de 2011

Um Deus democrático?

Pode Deus ser democrático?


“Neste momento seria importante que os seguidores democráticos das três religiões, que intrinsecamente não são democráticas, fizessem um esforço para tentar conciliar as exigências da sua fé com a rejeição dos tiranos e tiranias”, escreve o jornalista espanhol Juan Arias, em artigo publicado no El País, 13-04-2011. A tradução é do Cepat.
Juan Arias foi, durante muitos anos, correspondente de jornais espanhóis, em Roma, onde cobria os assuntos relacionados com o Vaticano.
Eis o artigo.
Poderia parecer uma provocação, neste momento em que tantos cidadãos estão sacrificando suas vidas em defesa da democracia e da liberdade – dois vocábulos sinônimos – nos países árabes, que nos perguntássemos se Deus pode ser democrático. Mas não é. Justamente neste momento, na nova revolução que os povos do Oriente estão vivendo, estão de alguma maneira presentes as três grandes religiões do Livro, as três crenças monoteístas da História: judaísmo, cristianismo e islamismo.
Muitos dos medos nesta hora que a humanidade vive com apreensão, perplexidade e esperança ao mesmo tempo, têm coloração religiosa. Basta recordar o medo de que os movimentos islâmicos extremistas e antidemocráticos possam chegar ao poder sob a desculpa de derrotar o tirano de turno.
Israel está perplexo. É acusado de preferir a perpetuidade de regimes ditatoriais, fiéis a ele, em detrimento das democracias que poderiam florescer nestes tempos da Revolução dos Jasmins. Israel é filho do Livro, da Bíblia, do Deus único do Sinai, inimigo feroz dos ídolos, um Deus que não foi nem poderia ser democrático, mas que era também o Deus que libertava os escravos dos faraós egípcios.
Os cristãos oficiais, a outra religião monoteísta, estão, na minha opinião, muito calados em relação à revolução em curso em busca da democracia árabe. Não deveria estranhar. Há menos de um ano, o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Tarcisio Bertone, afirmou de forma taxativa que a Igreja “não pode ser democrática” porque nela o “poder é indivisível”.
O Vaticano segue sendo uma monarquia absoluta, pouco permeável aos valores democráticos modernos. E a Igreja católica já viveu regimes teocráticos tiranos; já usou e abusou da Inquisição e das guerras de religião. Uma Igreja em que o Papa goza da prerrogativa da infalibilidade e do poder de excomunhão, não pode ser democrática.
E, contudo, hoje, talvez mais do que nunca na história, os seguidores das três grandes religiões monoteístas – judeus, cristãos e muçulmanos – começam a ser sensíveis aos valores modernos da democracia, a melhor forma até hoje conhecida de expressar essa verdade irrenunciável de que todos os seres humanos são iguais e de que ninguém foi escolhido por nenhum deus para governar os demais; muitos sacrificam suas vidas na defesa deste princípio sacrossanto de que todos somos igualmente livres.
Assim como na antiga Grécia a democracia era sinônimo de liberdade, também hoje esse binômio é indivisível. E essa é a grande pergunta de todos os crentes de hoje: como conciliar sua fé – que se funda no absolutismo religioso, em que o poder é dado, mas não participado livremente –, com os princípios irrenunciáveis dos valores democráticos nos quais o poder está no povo, é de todos e não de alguém que se apropria dele?
Neste momento seria importante que os seguidores democráticos das três religiões, que intrinsecamente não são democráticas, fizessem um esforço para tentar conciliar as exigências da sua fé com a rejeição dos tiranos e tiranias, admitindo que a pior das democracias é melhor – não diria mais divina – que a melhor ditadura castradora de liberdades.
Fiz – primeiro como enviado do extinto jornal Pueblo e, depois, deste [o El País] – mais de 100 viagens com os papas Paulo VI e João Paulo II. Visitamos outros tantos dirigentes do mundo, ditadores e democratas. Com tristeza tenho que reconhecer que as simpatias do Vaticano, e inclusive uma certa conivência, eram mais evidentes com os governantes e monarcas absolutos, com os ditadores de turno, de direita ou de esquerda, do que com os regimes democráticos modernos. Lembro ainda, por exemplo, com inegável desgosto a familiaridade e espontaneidade de João Paulo II com o ditador chileno Pinochet em seu palácio, onde apareceram juntos em uma das janelas para dar a bênção aos fiéis presentes.
O Vaticano sempre se sentiu incômodo com os valores da democracia que nunca usou nem em seu pequeno Estado independente, presente do ditador Mussolini, nem no governo da Igreja, onde não existem eleições para a escolha de seus hierarcas.
Todavia, sem o apoio de judeus, cristãos e muçulmanos será difícil que o desejo, que começa a sacudir positivamente os países árabes em busca de uma democracia nunca conseguida, possa converter-se num sonho que ninguém sonhava.
Não sei se o deus das igrejas e das religiões pode ser democrático. Sei apenas que o sangue derramado nas praças dos países árabes em busca de democracia e contra a tirania é da mesma cor e valor do sangue derramado no madeiro do Calvário, o do profeta judeu sacrificado por ter afirmado que todos os seres humanos, desde os Herodes do poder até os leprosos abandonados nas sarjetas da vida, eram iguais, porque todos tinham a mesma dignidade de filhos de Deus.

(Inst. Humanitas Unisinos)

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