quarta-feira, 13 de abril de 2011

Líbia

O Labirinto Líbio
DOSSIER | 13 MARÇO, 2011 - 10:20
No início, o regime de Khadafi impulsionou as transformações da sociedade líbia. Mas após o 11 de Setembro, Khadafi ofereceu de imediato o seu apoio aos EUA. Antes, já começara as privatizações e o neoliberalismo. Por Vijay Prashad, Counterpunch

Khadafi em 1969, junto com Nasser do Egipto.
No início, o regime de Khadafi impulsionou as transformações da sociedade líbia. Mas após o 11 de Setembro, Khadafi ofereceu de imediato o seu apoio aos EUA. Antes, já começara as privatizações e o neoliberalismo. Por Vijay Prashad, Counterpunch
Em 1969, o coronel Muammar al-Khadafi (de 27 anos) surpreendeu o velho rei Idris que se encontrava, na altura, na Turquia em tratamento médico. Inspirado pelos Oficiais Livres no Egipto, Khadafi e seus camaradas coronéis conduziram à força o frágil estado da Líbia e a ainda mais frágil sociedade líbia para o socialismo. O principal recurso da Líbia era o seu petróleo e, na altura em que Idris foi deposto, o país exportava três milhões de barris de petróleo por dia. Escandalosamente, recebia a menor receita por barril do mundo. Idris aproveitava-se das receitas e o povo sofria desmedidamente. Foi por isso que praticamente não houve oposição ao golpe de Khadafi.
O regime de Khadafi impulsionou uma série de progressos radicais para transformar a sociedade líbia. A Líbia teve o infortúnio de ser um longínquo posto avançado, quer do Império Otomano, quer das proezas coloniais italianas. Carecia dos progressos sociais mais básicos. Durante a primeira década do regime de Khadafi, o Estado assumiu o controlo dos jazigos de petróleo e aumentou as suas receitas. Esse dinheiro foi então deslocado para o bem-estar social, principalmente para mais alojamento e melhores cuidados de saúde. Durante a segunda década (1978-1988), o regime restringiu a iniciativa privada e encorajou os trabalhadores a assumirem o controle de cerca de duas centenas de empresas. A redistribuição de terras na planície de Jefara, a oeste de Tripoli, foi o equivalente rural. O Estado entrou em cena para administrar todos os sectores macroeconómicos, ao mesmo tempo que o Banco Central redistribuía riqueza, impondo um tecto nas contas bancárias dos consórcios financeiros.
Apesar de ser um nacionalista da linha de Nasser, Khadafi não era entusiasta do secularismo. O seu “Livro Verde” descartou o capitalismo e o comunismo a favor de uma “Terceira Teoria Universal”, no sentido do mundo árabe regressar aos fundamentos do Islão, tanto em termos políticos como económicos. A expulsão dos residentes italianos da Líbia esteve na sequência tanto dessa imposição islâmica como do nacionalismo, bem como da adesão de Khadafi à revolução islâmica, do Chade às Filipinas (o instrumento para as suas ambições foi a Legião Islâmica, al-Failaka al-Islamiya, criada em 1972). O militante islâmico em Khadafi só foi dominado quando ele próprio sofreu uma tentativa de assassinato, em 1993, e com o crescimento da militância na vizinha Argélia. O islamismo político de Khadafi foi rapidamente convertido em paranóia em relação à Al-Qaeda no Magrebe.
Após o 11 de Setembro, Khadafi ofereceu de imediato o seu apoio aos EUA. Em Outubro de 2002, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Mohammed Abderrahman Chalgam, admitiu que o seu governo trabalhava em estreita colaboração com os EUA no combate ao terrorismo e, alguns meses mais tarde, o óbvio sucessor de Khadafi, Saif al-Islam Al-Kadhafi, falou calorosamente do apoio da Líbia à guerra de Bush contra o terror. Neste momento, é possível ler no site de Khadafi esta declaração notável do velho coronel: “O fenómeno do terrorismo não é um motivo de preocupação apenas para os EUA. É a preocupação do mundo inteiro. Os EUA não o podem combater sozinhos. É lógico, razoável ou produtivo confiar a tarefa apenas aos EUA?”. Precisavam de Khadafi, que tinha um terror absoluto de grupos como o Grupo Combatente Islâmico Líbio. Deve ter aterrorizado Khadafi descobrir que milhares de pessoas assistiram ao serviço fúnebre de Ibn Sheikh al-Libi, em Maio de 2009, na sua cidade natal, Ajdabia (al-Libi foi preso no Paquistão em 2001 e morreu sob custódia dos EUA. A Líbia estava em conluio com os EUA neste e noutros casos de combatentes líbios presos durante as guerras no Iraque e no Afeganistão).
A Questão Oriental
Ajdabia, cidade natal de al-Libi, situa-se na parte oriental da Líbia, a histórica wilayat de Cirenaica (outra cidade nesta região é Bengazi, que foi o rastilho dos distúrbios em 2011). O Leste da Líbia orgulha-se de sua longa tradição de resistência contra a autoridade estrangeira. As suas tribos lideraram a resistência contra os Otomanos e depois contra a ocupação italiana. O herói da luta contra os italianos foi Omar al-Mukhtar, cujo rosto adorna a nota líbia de dez dinares e cuja luta Anthony Quinn imortalizou, perante uma audiência mundial, no filme de 1981 (financiado pelo governo de Khadafi), “O Leão da Deserto”. Foi também das províncias do leste que surgiu a ordem islâmica Sanusiyah, de onde vem o rei Idris. A ordem Sanusyah continua a controlar a fidelidade de um terço da população da Líbia. Alguns deles continuam a considerar Khadafi o responsável pela deposição do seu rei.
O novo regime de Khadafi tentou, alegadamente, derrubar a supremacia das tribos. Na verdade, fortaleceu a sua própria tribo, a Qadhadhfa, e os seus amigos pessoais. A confederação Sa'adi do Leste foi excluída da nova administração. Os lucros do petróleo e o salário social prometido pelo novo regime revolucionário serviram apenas de parca ajuda ao Leste empobrecido.
Revolução Dentro da Revolução
A negligência do Leste intensificou-se mas, na década de 1980, o regime de Khadafi mudou de direcção, tal como no resto do país. A utilização prosaica dos excedentes do petróleo conduziu à estagnação económica. Khadafi foi reabilitado quando os Estados Unidos, nos anos Reagan, bombardearam o seu complexo, matando a sua filha Hanna (de 15 meses). O povo líbio uniu-se em torno dele e do seu regime. O anti-americanismo, bastante fácil com Reagan ao comando em Washington, proporcionou cobertura para o que Khadafi chamou “revolução dentro da revolução”. Este foi o slogan líbio para expressar a entrada do neo-liberalismo ou o que Khadafi chamou “capitalismo popular”. Em 1987, acabaram as políticas débeis de substituição de importações e as “reformas” na agricultura e na indústria transbordaram dos manuais do FMI. Em Setembro de 1988, o governo aboliu as quotas de importação e exportação, permitindo que o comércio retalhista florescesse nos novos suqs das cidades.
As sanções da ONU, em 1992, lançaram as “reformas” no caos e permitiram que o velho Khadafi renascesse das cinzas. Rupturas na elite vigente umas vezes abrandavam as “reformas”, outras aceleravam-nas. O principal rosto da agenda neo-liberal foi Shokri Ghanem, que tinha sido afastado do gabinete em que era primeiro-ministro, em 2006, para assumir o mais importante papel de chefe da Corporação Nacional de Petróleo. Ghanem impôs agressivamente o investimento estrangeiro no sector do petróleo e apressou-se a promover os acordos de participação na produção e exploração de petróleo com empresas que iam da Occidental Petroleum até à China National Petroleum. Britain's O britânico Tony Blair e o francês Sarkozy foram beijar o anel de Ghanem e prometer investimentos nas concessões de petróleo. É a razão que levou o governo britânico a libertar o alegado bombista de Lockerbie, e Berlusconi curvar-se diante do filho de Omar al-Mukhtar, em 2008, e entregar mais de 5 milhares de milhões de dólares como um pedido de desculpas pelo colonialismo italiano. Na sua sua grosseria característica, Berlusconi disse que pedia desculpas para que a Itália ficasse com “menos imigrantes ilegais e mais petróleo”.
Ao lado de Ghanem está o filho de Khadafi, Saif, que escreveu uma dissertação na Faculdade de Economia de Londres, em Setembro de 2007, sobre “O Papel da Sociedade Civil na Democratização da Tomada de Decisão Global: do poder das influências à tomada de decisão colectiva” (o trabalho foi orientado por David Held). Saif defendeu a necessidade de dar direitos de voto às ONGs ao nível da tomada de decisão internacional; de outro modo os Estados Unidos e os seus aliados do Atlântico continuariam a imperar. A “natureza indispensável” das ONGs, segundo defendeu, é serem “defensoras e críticas independentes dos marginais e vulneráveis”. Permitir que as ONGs moderem as ambições do Norte é muito mais “realista”, argumentou Saif, do que esperar que as relações internacionais de alterem. Esse tipo de realismo levou-o a ter fé nas “reformas” e ao seu recente apelo à cruel violência armada contra os protestos em Tripoli e Bengazi. “A Sociedade Civil”, na linguagem do neoliberalismo, está limitada ao trabalho de criar ONGs que sejam relutantes em corrigir os equilíbrios do poder estabelecido. Os maltrapilhos das ruas não fazem parte da “sociedade civil”, pois eles são a irracionalidade em acção.
O Conselho Popular de Base queixou-se das “reformas”, em Setembro de 2000. Não gostaram da privatização das empresas estatais, nem da criação de enclaves de comércio livre. O seu jornal, Zahf al-al-Akhdar, criticou severamente as empresas estrangeiras e o sector do turismo. Uma tendência do Concelho também estava irritada com as concessões políticas de Khadafi para reduzir a sanção das Nações Unidas e para receber favores em capitais europeias (a Líbia pôs fim ao seu programa nuclear como parte dessas concessões). O Conselho tentou conter o ritmo da “reforma”. As suas acções irritaram o FMI, cujo relatório de 2006 concluiu: “O progresso no desenvolvimento de uma economia de mercado tem sido lento e descontínuo”.
As lealdades tribais do antigo republicano Khadafi começaram em casa. O seu filho Muatassim participou na criação de uma Zona Comercial de Exportação Livre, perto de Zuwara. Muatassim, a quem o embaixador sérvio em Tripoli chamou “um homem sanguinário” e “não muito inteligente”, está há muito tempo zangado com o seu irmão Saif, que muitos consideram estar destinado a suceder a Khadafi. Saif, entretanto, tentou acelerar o ritmo das reformas através de seu super-comité do Conselho Económico e de Desenvolvimento. Os irmãos há muito lutavam entre si, mas sobre a essência do neoliberalismo estão do mesmo lado. Só que cada um reclama o mérito das “reformas”.
Os levantamentos no leste, articulados com os esforços neoliberais de Tripoli, viraram grandes sectores da população contra o regime de Khadafi. Resta-lhe pouco do brilho de 1969. É uma caricatura do velho revolucionário. Estamos longe do “agitador revolucionário” cujo lema era “as massas assumem o comando do seu destino e da sua riqueza”. Os planos ficarão estragados quando os militares questionarem o seu apoio (que dois dos coronéis nos seus Mirages tenham procurado refúgio em Malta, em vez de abrirem fogo sobre a multidão em Tripoli, é uma primeira indicação de uma orientação, mas, por outro lado, outros pilotos abriram fogo sobre a multidão). A questão ainda não está resolvida.
As massas saíram à rua. Uniram-se apesar de antigas rivalidades e de novos ressentimentos. Alguns deles têm objectivos tribais reaccionários e outros procuram libertar-se das “reformas”. Alguns contestam que um país de 6 milhões com uma tal riqueza de petróleo não se assemelhe aos Emirados e outros querem simplesmente ter mais controlo das suas vidas. Mas a maioria quer libertar-se dos meandros secretos do labirinto da Líbia.
Vijay Prashad é o titular da cátedra George and Martha Kellner de História da Ásia do Sul e Director dos Estudos Internacionais no Trinity College, Hartford, CT. O seu mais recente livro, “The Darker Nations: A People's History of the Third World”, venceu o prémio literário Muzaffar Ahmad de 2009. Acabaram de sair as edições sueca e francesa. O seu endereço é: vijay.prashad@trincoll.edu
Publicado originalmente em http://www.counterpunch.org/prashad02222011.html
Tradução de Paula Coelho para o Esquerda.net

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(esquerda. Net)

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