sábado, 23 de abril de 2011

Pensamentando

Rita
O jornalista Carlos Magnata experimenta como Raduan Nassar no conto de um fôlego só, um “moto continuum” da vida de Rita.
Por Carlos Henrique Magnata // sábado, 16 de abril de 2011

Mother and Child (detail from Three Ages of Woman) Gustav Klimt
,suou ao sentir nas costas um rubro e escaldante amanhecer anunciar o novo destino, mas Rita só pensava em chegar logo e acordar Maria para a escola e encerrar a agonia cotidiana repetida semana a semana, dia a dia, hora a hora, desde quando João sumiu num agosto tremendo e a noite dividiu o dia a plenos pulmões midiurnos, no cume do sol, na chegada do meio-expediente, sem se dar conta da dor vindoura, sumiu João e deixou Maria sem pai e Rita sem mais nada, afora a certeza de manter os olhos na estrada e as mãos no volante pelo tempo e ao custo necessários – e ele falou que vinha para o almoço, um cheiro em Maria, um fogo em Rita e uma boquinha na sobremesa – até aquela manhã refazenda a ser assistida, mesmo sem ser segunda-feira, era dia de se refazer na delícia de abacaxi, dessa vez para si, pedaço a pedaço, devagar, antes de preparar as malas e esquecer tudo o mais, depois da aula de Maria que calhou ser a última do ano, naquele dia tudo calhou, Rita sabia, era Deus falando consigo, uma dádiva poder sair com a filha, as roupas e a dignidade guardada na gaveta desde quando cansou de tentar correr, de tentar se esconder, e atravessou para o outro lado e aceitou os carinhos pardos da noite pelas mãos de um namorado quente e abastado, maníaco por levá-la aos melhores eventos e apresentá-la aos melhores amigos e sussurrar-lhe ao ouvido “todos amam minha garota” e fazer de seus braços correntes e apresentar o país dentro dos olhos da noite à Rita, descobriria depois como são agrestes os sertões da noite, mas de pronto caiu de encantos pelo novo homem e pelo novo mundo depois do abandono e da fome, nunca estudara e nada sabia fazer, senão carinho, sentia-se, pois, paga pelo amor doado e coberta de tesouros sinceros ia todas as noites com o homem à caça de prazeres e novos amigos, cada vez menos novos, cada vez menos amigos, cada vez mais ricos, cada vez menos amáveis, mas antes de negar, antes de fugir, Rita sentia o perfume branco da noite e ficava, ficava, ficava muito doida e ouvia o homem, os homens – “deixe rolar, bebê, deixe rolar, mexa e faça minha alma feliz” – e no sopé da cama via a mãe de cabeça baixa, mãos espalmadas e joelhos no chão – “com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e do espírito santo” – e deitava e ouvia no fim dos sonhos de névoa púrpura uma voz conhecida e amada e quente e quente e doce e bem-vinda – “vem, bebê, acende meu fogo” – e não estava mais em lugar nenhum e já estava fora dos olhos da noite e de novo era de seu homem e só de seu homem e de manhã logo cedo era de Maria e depois da cama fria do seu quarto até que a filha a acordasse ao meio-dia para lembrar de encenar novamente a hora, o dia, a semana, a vida, agora mais confortável, agora com escola prà menina e médico e roupa e até ônibus na porta com uma babá pra pegar a filha e chamar os olhos mortos da manhã de Rita para a farsa num outrora impensável “bom dia madame”, mas já se passaram quantos anos e a menina que guardava a vida de Rita no sorriso crescia rápido e trocava de muda de roupa e lia para a mãe poemas tão lindos e olhava seus olhos de um jeito dentro insuportável para ela, envergonhada por ter estado doida demais para manter as mãos no volante e os olhos na estrada, já perdida não, ela não deixaria mais rolar, chegara a hora do dia destruir a noite, o tempo de hesitar acabara, o tempo de fingir acabara, o tempo era de Maria acordar a mãe de manhãzinha, de incomodar-lhe o sono noturno com um prelúdio e não mais um réquien, era tempo de ser mãe e não ser mais Rita, mas o homem de Rita ria dos sonhos dela e a envolvia com seus abraços e carinhos e presentes e antes de saber já estava nos braços da noite, cercada, inspirando o ouro branco – “com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e do espírito santo” – e no “vem, bebê, acende meu fogo” já era dia e jájá a escola de Maria e o sono com sucrilhos e a encenação cotidiana, quebrada pelas certezas de que Maria crescia com a pressa das crianças e o volante girava livre e a estrada, como João, sumira, mas por culpa sua, não por… não por nada, não queria mais, acabou o tempo de hesitar e depois do pó da noite e da bruma púrpura, um isqueiro esquecido por qualquer amigo saciado transmudou-se em chave e a cama tornou-se chama e a estrada ressurgiu depois da luxúria e Rita deixou abraçados o homem e a morte e entrou no carro com o destino nas mãos, ainda assustadas mas firmes de novo no volante, escutou o ronco do motor, sentiu o assento tremer, notou não haver dor nem alegria nem nada além de pupilas castanhas no retrovisor e acelerou ao mirar os olhos dourados da aurora distantes, mas certos, no horizonte
*Carlos Henrique Magnata é sertanejo de Tabira, Pajeú. Formou-se em jornalismo e passou pela Folha de Pernambuco, Jornal do Commercio e Diário de Pernambuco. Mas foi acampado no Rio Grande do Sul, com os sem terra, que descobriu como a vida pode e precisa ser outra.
(Revista Zena)

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