sábado, 8 de janeiro de 2011

Devoção ao demônio

Devoção ao demônio
ou One plus One
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Por Luiz Rosemberg Filho & Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro


Jean-Luc Godard consagra-se hoje, talvez, como o único artista no mundo suspenso sob o diabólico tripé: controle dos meios de produção, bancos e mídia, a que todos nós estamos submetidos.

Colagem de Luiz Rosemberg Filho

A substancialidade é a maior referência que falta hoje ao cinema de fora e de dentro. O mercado totalmente contaminado satisfaz-se com a velocidade dos “filmes” caracterizados pela violência e o espetáculo. E com uma proximidade empobrecedora e burra com a TV. Até o enquadramento tem como preocupação a televisão da sala de estar.

Se ontem procurávamos o distanciamento Brechtiano em poemas geniais como Deus e o Diabo na Terra do Sol, Os Fuzis, Terra em Transe, O Bravo Guerreiro, Matraga, Bang-Bang , Tudo Bem, Macunaíma... hoje, o especificamente correto é ser comportado, idiota e seguir o manual de Hollywood, decisivo para que se mate definitivamente toda e qualquer experimentação. Não tem sido assim? Solidez criativa para quê? O que circunda o cinema hoje é a burocracia, o lixo moral, a podridão do poder público, o espetáculo, a TV e o fascismo.

Ainda assim cinema e TV estão em posições opostas. Se no cinema se pode imaginar poesias infinitas, na televisão só se destrói sonhos e dúvidas. Não estamos falando da TV pensada e trabalhada por Rossellini, e sim desta idiotice enraizada em todos os cantos do mundo como estrutura essencial de poder. Criar uma imagem no cinema é uma coisa, na TV é outra, pois ela logo se identifica com o ser-consumo, consumido pelo vazio da mundanidade. E onde todo mundo é igual, a televisão só acaba sendo um instrumento militar de reprodução da ideologia dominante. Um uso da ideologia como “coisa” concebida para ser descartável. E se a nitidez das “idéias” passa por um conceito de intimidação, medo ou alienação – o que se pode esperar?

Ora, digamos que a música é um fenômeno mágico da existência da alma. E uma vez identificada com o tempo, torna-se expressão transcendental de desejos nem sempre aceitos pela história, que se fundamenta numa espécie de religiosidades de aparência. Ou seja, tirando os poemas musicais-religiosos de Bach, Mozart, Vivaldi (todos do passado), o que se faz hoje e que se vomita na TV, carece de conteúdo, valor e um significado mais profundo. A “música” religiosa popular contemporânea feita para o mercado é burra! Sua verbalidade é pobre. Isso para não dizer que é m..... Muito comum na TV, torna-se a imoralidade do dinheiro, traduzido como oportunismo. E no que se fundamenta no capital, é só um produto menor para o mercado de aberrações religiosas.

A genial música Simpatia pelo Demônio do álbum O Banquete dos Mendigos, dos Rolling Stones, escolhida por Jean-Luc Godard para seu filme One Plus One (1968) é absolutamente épica, política e oportuna e genial. Fundamentalmente irreverente, pois corria paralelamente aos manifestos políticos do Poder Negro. Ou seja, ensaiava-se um intraduzível diálogo com os Demônios, o que nos obriga a pensar nesse mudinho idiota em que vivemos hoje entre a pipoca e a Coca-Cola. O filme tenta traduzir, à maneira de Godard, as relações possíveis entre um ensaio dos Stones e uma investigação da história daqueles momentos de muitas guerras de ocupação na Ásia. E ao investigar o real, uma explicitação da revolução sonhada da linguagem, e do real.

Godard em One Plus One ou Devoção pelo Demônio filma manifestos, posições e discursos políticos. Dali para frente radicalizou com British Sounds, Pravda, Vento do Leste, Luta na Itália... flertando com um cinema eminentemente político tipo Dziga Vertov. E o então formado Grupo Dziga-Vertov, não fez um cinema político digestivo tipo Costa Gavras, e sim algo fundamentalmente ousado até mesmo para os dias de hoje. Godard deu expressão a um novo cinema político então puro e até certo ponto ingênuo, muito usado por partidos, fábricas, sindicatos e universidades. Levantou contradições, investigou a filosofia, refletiu sobre a sexualidade. Visualizou pensamento difíceis, fundamentou o saber, teorizou sobre a natureza, mergulhou no olhar, desmontou o conhecimento imediatista, elaborou teorias, usou analisando à fundo a história da luta de classes do seu tempo...

Godard e os seus Stones se fundem numa procura da poesia, da transgressão e da beleza. O filme é uma tradução de um encantamento do aceitar e do rejeitar a razão que tudo tenta explicar. Mas a música não se pode traduzir como só em sendo mercadoria de segunda, como as cantadas na TV. Pois, justamente, ela atua no rejeitar das nossas muitas certezas. Sua expressão ou expressões passam pelo encantamento anti-afirmativo ou investigativo. Funcionando um pouco ou muito, como a cura no baixo uso da religião é o único acesso ao real. Ora, o que é o real? No nosso triste tempo é o não ser para o mercado (ria!). O ser para comprar, consumir e ser consumido por tristezas que não se resolvem. Daí o canto dos Stones ao demônio, indo muito além do certo e do errado.

One Plus One já era o caminho do que viria de Godard, na sua desconfiguração do espetáculo, em que o conceito de tempo torna-se amplo, numa aproximação de Walter Benjamin, que diz: “Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade”.

Godard faz renascer a poesia de um ensaio onde o movimento principal é a repetição como língua e linguagem necessariamente desconhecida do público. Afinal, como se constrói uma música? Poderíamos usar uma explicação de Bachelard, que afirma: “As verdadeiras imagens são gravuras. A imaginação grava-se na memória. Elas aprofundam lembranças vividas para se tornarem lembranças da imaginação.”

Digamos que cada enquadramento testemunha um dado político do conhecimento que vaga sempre na incerteza da poesia. A poesia como paisagem subverte a imagem. E a política é uma forma de reflexão sobre a linguagem. Dessa construção simbólica sólida nasce Simpatia pelo Demônio ou One Plus One com o som e a fúria de um manifesto sensível ao conhecimento, o do saber como alimento e necessidade, assim como a comida. Um filme Pop além da arte de adequação às muitas certezas fechadas sobre o conceito de saber do poder e do mercado. Godard sempre fez um cinema pensado de retorno à linguagem e à política, indo além de tudo do já feito.

Godard tornou-se, por ser ousado e profundo, odiado pelo regime militar da época. Inadequado ao mercado de futilidade fez do cinema pintura. Da pintura foi à literatura, e desta para a música, filosofia, antropologia, saber... Sua interpretação contradiz certezas, Hollywood e a TV. O cinema, para Jean-Luc Godard, é uma totalidade de sonhos, posições e contradições no reino da linguagem como questão fundamental. Ele jamais usou o cinema para ilustrar um conto ou um livro – indo sempre além de formulações fáceis. O ser Godard é um estado de experimentação permanente. E no que diz respeito as suas imagens, seu solo é fértil e infinito, pois foi se transformando numa constelação de caminhos e ideias.

E, então, cinema, mito, conhecimento e linguagem. Godard, e não um culto aos Rollings Stones, ou o que deveria ser a significação sobre este fantástico grupo musical. Godard insiste num apagamento para um renascimento. O que os bárbaros tentaram na Renascença, apenas reproduzindo feitos e grandes obras de arte. O que o iluminismo tentou e fez melhor, e sem conseguir, pois faltou a crítica histórica e de movimentos do período que encantou e coloriu o Iluminismo. Inegável, mas não transfigurador, como só Godard poderia fazer.

Quem ama os Rollings Stones até poderá odiar. Mas terá a oportunidade única de aprender e de caminhar sobre a desmistificação do processo bárbaro de nossa existência, onde a arte (como neste filme de Godard), flui e frui na solidão das esferas, iluminado por aquela música que encanta os filósofos. Nenhuma certeza, só buscas, interrogações e esperas de uma práxis: a de Godard. Nossa referência é a década de 60 (o ano era 68) e o que ela representou, um processo de movimentos pela linguagem e sua significação numa construção solidária e menos bárbara. Mas, o que ficou mesmo, foi a barbárie, a que vamos ressentindo sem transfigurar. Aceitando, acomodando e dividindo sem muita solidariedade as migalhas do banquete que, de uma mesma comilança, vamos servindo.

Com todos nós mais aderidos a uma forma de exploração que veio para nos dizer que é assim e se quiser. Senão é o gueto, a exclusão ou o extermínio. Situações e condições a que Godard felizmente, ainda nos “alumia”. Este Godard, gênio da linguagem e do cinema, é quase mitológico, porque soube intermediar, ao ficar entre o mito e o conhecimento para nos guiar, ao iluminando as telas e corrigir os focos de projetores analógicos e digitais. Ao tocar as estruturas, os fundamentalismos e o conservadorismo ideológicos da burguesia transnacional e globalizada. Que domina tudo, até a consciência de nossa aceitação e entrega.

Em Simpatia pelo Demônio, Godard foi reinversor de imagens e significados, e trouxe para mais próximo de nós a sua Academia, a de múltiplas leituras para um entendimento e que nos ensina a pensar e não só a reproduzir, copiar, informar. E tudo em oposição a Ford e Taylor, às porcas linhas de montagem Hollywoodianas. Íamos nos esquecendo: na América só é popular o que é comercial. Como aqui: só é comercial o que é americano, Roliudiano e boçal. E com muita ideologia. E o tempo parece pródigo para alguma melhoria do nosso cinema. Capital não falta. Mas, e o poder político e cultural Godardiano, onde ficam?

Para outra linguagem de um cinema impregnado pela teofania de um poder protegido e que progride eliminando o seu povo. Numa relação edipiana com as Academias e o saber, que fazem do povo massa de experimentos para seus incestos sem fim e sem culpas. Em nossas ações, precisamos tocar o processo, como Godard neste seu Simpatia pelo Demônio. Cinema de arte, poesia, filosofia, psicanálise, teatro, política e inquietação. Com todos os deuses na incorporação de demônios. Representação de uma outra mística que o capital não tem como mistificar no seu êxtase e histeria de exterminar. A mística de Godard sobre os Rollings Stones é uma sinfonia de tempos primordiais e atuais, sem fim, um encontro de todos os povos solidários na comunicação e em comunhão. Com ruídos e silêncios entre discursos, metralhadoras e mísseis. O que sobra para dividir e somar é o som infinito, entendido e incomparável da orquestra de Godard acompanhando os Rollings Stones.

Godard alcançou neste filme a linguagem do princípio; do princípio com o fim, trazendo esperança e beleza, pela nudez imperceptível do comunicar e do sonhar. Numa utopia que o cinema não deixa morrer, nem esquecer. Esta relação entre mito e conhecimento. Esta comunhão entre deus e o diabo. E, como nossa ideia é a de Brasil, lembramos muito de Raul Seixas sem o bosta do Paulo Coelho, em alguns instantes desse maravilhoso Rollings Stones.
Nessa viagem de Godard que, sem abandonar o maravilhoso conjunto inglês, compõe a sua música filosófica, política e cultural. Constrói tempos de avanços, de regressos e aproximações, numa relação simultânea e solidária no sentido social de múltiplas significações. E sem esquecer a presença de todas as significações entendidas como concepções e diferenças de tempos, gentes e lugares. Comum somente nos gênios das tragédias gregas.

Jean-Luc Godard consagra-se hoje, talvez, como o único artista no mundo suspenso sob o diabólico tripé: controle dos meios de produção, bancos e mídia, a que todos nós estamos submetidos, pelo que atingiu como superação, entendimentos e resistência. Continua sua luta de crenças e realizações, com integridade e elevação. Privilégio de mitos e de deuses. Sua linguagem. Não foge, não se ausenta e nem se exclui. E, neste Simpatia pelo Demônio ou One Plus One segue mais presente do que nunca, transfigura ordens, princípios e sistemas. Como na recusa desse Oscar que tentaram lhe empurrar na Academia Americana de Cinema. Este é Godard mais sólido, empunhando a câmera como no antigo tripé de madeira dos anos de aprendizagem. E nós, somos o que somos, mais mortos do que vivos, oferecendo o rabo pela estatueta sem valor algum para nós! Pena.

21/11/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

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