quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Loiras

De loiras, mulatas e negras
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Por Jorge Pinheiro, de São Paulo


A marcha das mulheres explodiu estereótipos, mitos sexuais, definiu novos comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.

Veja o vídeo
http://www.youtube.com/watch?v=porOx00eXLg

Colagem de Luiz Rosemberg Filho
A eleição da presidenta Dilma Roussef me levou ao passado. Ao início da alta-modernidade, expressão que prefiro ao invés de pós-modernidade, porque apesar das revoluções vividas ainda não fomos além da modernidade. E por causa da eleição da presidenta, resolvi fazer uma viagem às três últimas décadas do século XX, tempo do movimento da contracultura feminina, definidor de comportamentos e cosmovisões. E parto daí, porque foi em 1975 que a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher, dando força a grupos e publicações feministas, que discutiam o papel secundário que era atribuído à mulher na sociedade.

Foi a acumulação, expressão daquilo que despontava no campo de gênero, que nos deu o novo. Foi época do fazer e pensar o movimento de mulheres, agregando a participação de diferentes setores sociais, trabalhadoras da cidade, e depois do campo, intelectuais, negras, ecologistas, portadoras de deficiência, lésbicas, lideranças comunitárias e donas de casa.

E eu lembrei das loiras, mulatas e negras, que durante a ditadura militar estavam reunidas em torno da luta pela volta da democracia, por melhores condições de vida e pela alteração da condição desigual das mulheres.

Teresinha de Jesus/ Deu a queda foi ao chão/ Acudiram três cavaleiros/ Todos três, chapéu na mão.

Uma das maneiras de se conhecer as representações que a sociedade tem da mulher, disse Rose Marie Muraro, é a análise de seus mitos sexuais. E, se quisermos compreender os mitos sexuais brasileiros, vale a pena compará-los com os de outras sociedades, como a estadunidense. Afirmava Muraro: “Quando falamos de mitos sexuais brasileiros, dois nomes nos vêm à memória: Xuxa e Vera Fischer. Xuxa, mais do que qualquer outro símbolo sexual no Brasil é a megastar no sentido americano do termo. Construiu uma imensa fortuna em cima de um império baseado no consumo de sua imagem pelas crianças brasileiras.”

E analisava tal imagem, elaborada pela TV Globo, a da boneca loura, infantil e erótica. Uma imagem que para as meninas era o modelo de feminilidade disponível e que não deixava lugar para outra alternativa, pois ocupou por anos, o espaço matinal de entretenimento nas casas brasileiras.

E como essa imagem da Xuxa (Santa Rosa, 27/03/1963) não foi construída para agradar somente às crianças, mas para ser modelo de sexualidade feminina, o fenômeno criou vetores. Os meninos ao desejá-la procuravam parecer homens maduros, absorvendo a mensagem de que a sexualidade precoce é o caminho para a masculinidade.

Se juntarmos essa imagem à de Vera Fischer (Blumenau, 27/11/1951), também loura, mas de apelo sexual adulto, podemos ver como definições começaram a ser construídas.

Ambas eram louras e, no Brasil, isso lembrava as atrizes do cinema estadunidense. E as consequências para a mulher brasileira passaram a ser muito ruins. Quase nenhuma brasileira da época tinha condições para se identificar com essas modelos e isso rebaixou a autoestima, diminuindo no imaginário seu valor no mercado sexual. Aliás, segundo Muraro, os símbolos sexuais são feitos para isso mesmo, para diminuir o valor das mulheres como mercadoria e manter intacta a dominação masculina.

Outro ponto importante na construção desse imaginário feminino era a obsessão pela juventude. Xuxa tinha pavor de envelhecer e Vera Fischer também. Esta última procurou formas perigosas de escape, quando acreditou que a juventude ia declinando. Aliás, depois dos quarenta as mulheres começavam a se sentir inseguras, porque o símbolo sexual é sempre um objeto descartável, sem vida e sem identidade.

O primeiro foi seu pai/ O segundo seu irmão/ O terceiro foi aquele que a/ Teresa deu a mão

Por isso, Xuxa, em entrevista a Regina Rito, disse que “nenhum fã perdoa quando um ídolo envelhece”. Ela tinha começado sua carreira na televisão em 1983, quando foi convidada por Maurício Sherman para apresentar o Clube da Criança, na Rede Manchete. Nessa época, trabalhava como modelo em Nova York e gravava o Clube nos finais de semana. Em 1986 estreou o primeiro programa diário com seu nome: O Xou da Xuxa, na Rede Globo.

É bom lembrar que as mulheres que se tornaram símbolos sexuais, pin-ups, dificilmente aceitavam retornar ao status de ser humano. Jean Harlow (Kansas City, 03/03/1911), Judy Garland (Grand Rapids, Minnesota, 10/06/1922), Marilyn Monroe (Los Angeles, 01/06/1926), por exemplo, acabaram morrendo nessa busca tresloucada de meios de escape à depressão causada pelo envelhecimento.

Assim, o culto da adolescência e da juventude teve papel relevante na manutenção do status quo, ou seja, do controle da experiência e do conhecimento acumulados pelas mulheres mais maduras.

E esse movimento contrarrevolucionário à emancipação feminina foi tão forte e racista que, nesses anos, quase não encontramos mulheres mulatas e negras que tivessem conquistado status de símbolo sexual. As mulatas das escolas de samba, ou mesmo Taís Araújo (Rio de Janeiro, 25/11/1978), a Xica da Silva, eram símbolos de menor força para o marketing padronizado pela mídia.

Diferente desse panorama era o que começava a acontecer nos Estados Unidos. Lá, Madonna (Bay City, 16/08/1958) criou a imagem de transgressora dos valores puritanos e de independência em relação aos desejos masculinos, que ela manipulou publicamente sem inibição. E num ritmo acelerado, tão famosas quanto Madonna despontaram duas jovens negras: a cantora e atriz Whitney Houston (Newark, 09/08/1963) e a modelo Naomi Campbell (Londres, 22/05/1970), que fez par com a loura Cláudia Schiffer (Rheinberg, Nordrhein-Westfalen, 25/08/1970) .

Quanta laranja madura/ Quanto limão pelo chão/ Quanto sangue derramado/ Dentro do meu coração.

Assim, nos Estados Unidos foram sendo criadas alternativas de identificação feminina, com identidade própria, que rompiam os padrões patriarcais de beleza e moralidade. Esse fenômeno, em relação à mulher negra, era previsível, pois os negros emergiam como nova classe média, apesar de, na época, 25% dos homens negros acabarem presos ou assassinados, vítimas do racismo. Ainda assim, o povo negro começava a impor valores por meio da luta por direitos civis, mas também por sua potencialidade de consumo.

E as mulheres norte-americanas exerceram pressão sobre as estruturas. Em poucos anos abraçaram a causa da liberdade feminina, como forma de enfrentar a competição do mercado de trabalho. Nas universidades surgiram centenas de centros de estudos da mulher, que fizeram das questões de gênero categorias do debate teórico acadêmico. Ocuparam espaços políticos, foram eleitas para governadoras de Estado, prefeitas, e escolhidas como secretárias de Fazenda e, inclusive, secretária de Estado.

E no Brasil, derrubada a ditadura, a pressão por espaço político também cresceu. Surgiram os conselhos estaduais e municipais da condição feminina e, em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, que elaborou ações de governo em relação às mulheres.

Nas eleições de 1986, 26 mulheres foram eleitas para a Assembléia Nacional Constituinte. E, independentes de seus partidos, encaminharam propostas vindas das mulheres de todo o país para inclusão ou alteração do texto constitucional. Dessa maneira, 85% das reivindicações apresentadas pelo movimento de mulheres entraram na Constituição de 1988, ampliando como nunca antes se vira a cidadania feminina.

E, em 1996, realizou-se no Brasil uma eleição que incluiu o princípio de quotas, a fim de neutralizar a discriminação sofrida pelas mulheres nos partidos. Dessa forma, foi definido o mínimo de 20% das vagas de cada partido para candidatas mulheres.

Essa marcha explodiu estereótipos e mitos sexuais. A mulher definiu comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.

Dá laranja quero um gomo/ Do limão quero um pedaço/ Da menina mais bonita/ Quero um beijo e um abraço.

13/11/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Fontes
José Agripino de Paula, Lugar Público, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
Sérgio Sant’Anna, A Utopia de José Agripino, Folha de S. Paulo, 23/02/1997, caderno Mais.
Terra em Transe, direção de Glauber Rocha, com Jardel Filho, Paulo Autran e José Lewgoy no elenco. O filme recebeu dois prêmios no Festival de Cannes, o da Crítica Internacional e o Buñuel.
Rose Marie Muraro, A Mulher Combate Seus Mitos, Folha de S. Paulo, 6/04/1997, caderno Mais.

Jorge Pinheiro é cientista da religião e teólogo. É doutor e mestre pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Pastor adjunto na Igreja Batista em Perdizes (SP). Nasceu no Rio de Janeiro, em 1945, foi dirigente estudantil secundarista e universitário. Ligou-se ao Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), de inspiração brizolista. Exilou-se no Chile, onde foi preso após a queda do governo de Salvador Allende. Ligou-se às correntes trotskistas internacionais, viveu em Portugal e, clandestinamente, no Brasil, sob a ditadura. Foi processado pelo regime militar e, em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia. Exerceu o jornalismo na revista Manchete e no jornal Folha de S. Paulo, e foi um dos editores do jornal alternativo Versus, em sua última etapa, em São Paulo.

E-mail: jorgepinheiro.sanctus@gmail.com

Blog: http://jorgepinheirosanctus.blogspot.com/

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